sábado, 24 de dezembro de 2011

O homem do sobretudo

O inverno estava frio, mas não tão frio que o sobretudo se fizesse necessário. Na verdade, ele já começava a suar sob toda aquela camada de tecido, característica de um inverno rigoroso, o que não vinha a ser realmente o inverno paulistano. Mesmo assim, sentia-se importante, imponente, e muito elegante com ele. Enxugou a gota que lhe escorria da testa até a sobrancelha, e entrou no bar.
- Uma cerveja.


Era um boteco meio sujo, no centro da cidade. Realmente, seu sobretudo não encontraria um lugar que combinasse com ele bem ali, naquela região de prédios antigos, calçadões cheios de camelôs durante o dia e de mendigos à noite. "Com certeza você já frequentou lugares melhores lá de onde veio", pensou consigo mesmo, como se conversasse com seu traje. A verdade é que todos o olhavam como um alienígena, como se não pertencesse, de forma alguma, àquele lugar. O homem, claro, não o sobretudo; aquelas pessoas simples não seriam capazes de fazer tal diferenciação. Ele (o homem), se lembrou de como ele (o sobretudo) chegou em suas mãos. Uma tarde no aeroporto, olhando os aviões decolando e pousando, e num determinado momento, aquele sobretudo ali, largado, sobre um banco. Olhou em volta, procurou, e não viu ninguém que parecesse, sequer remotamente, com o dono de tal sobretudo. Nenhum esboço de zelo, nenhum olhar de observação. Provavelmente alguém que veio de algum ponto gélido da Europa ou América, encontrou o verão brasileiro e simplesmente o largou ali. Pegou o sobretudo, sentiu seu tecido, lá da máxima qualidade, o forro grosso, "para sobreviver um inverno glacial", pensou. Dobrou-o, colocou sobre o colo, esperou e ninguém se manifestou (não queria ser taxado de ladrão também). Após alguns minutos saiu andando, com ele em volta do braço; era seu e esperaria por uma data propícia para o uso.
E como esperou.
Finalmente, um dia mais frio, mas nem tão frio assim para um sobretudo daqueles, e resolveu utilizá-lo. Não se arrependeu, apesar de se sentir mais quente do que gostaria. O jeito como todos os olhavam, "invejosos", pensava. Algumas menininhas novinhas na rua, de shortinho e meia arrastão ensaiaram risinhos debochados, contido, mas ele não ligou. Sabia que a madrugada ia ser realmente fria. 
Terminou sua cerveja, comprou um maço de cigarros, e pôs-se a andar pelas ruas, sem destino. Afinal, não tinha o que fazer em casa, não tinha aonde ir, a cidade era sua única companhia, seu destino.


Ficou pensando em tudo que lhe acontecera recentemente, e começou a rir sozinho. Não acreditou que Suzana pudesse tê-lo largado daquele jeito, logo após ter perdido o emprego. Não foi culpa dele, as alucinações que começaram naquela manhã e causaram toda uma situação que terminou com uma funcionária em estado de choque. Ele nem queria lembrar disso. Mas riu, porque se lembrou do diálogo com Suzana ao chegar à casa dela, na noite anterior.
- Suzana! Abre, vamos conversar.
Havia pulado o muro. Do quintal a chamava. Chas, o yorkshire dela, veio abanando o rabo para ele, e mordendo a barra de sua calça, como de costume.
- Some daqui! (a voz era abafada, por trás da porta) Não quero você nem pintado de ouro!
- Puxa, é assim que eu vou ser tratado agora?
- Não sei mais quem é você. Tudo o que você me disse... Que monte de bobagens satânicas foram aquelas? E seus olhos? Você tá usando o que, seu filhodaputa?
- Suzana, fala comigo, não é assim que vamos...
- SOME DAQUI!
Foi muito rápido. Ela abriu a janela e virou um balde de água gelada sobre ele, acertando-o em cheio. Chas era arisco, escapou incólume.
Ele ficou sem reação. Olhava para si, encharcado, sem acreditar. O que diabo havia lhe acontecido? Como sua vida poderia ter mudado tão completamente de um dia para o outro.
- Desgraçado, nunca devia ter me envolvido com um lixo como você.
Chas voltou, abanando o rabo. As últimas palavras de Suzana realmente o feriram. Olhou para Chas, seu rabinho com seu suingue ininterrupto, e seu olhar curioso, a cabeça meio que virada para o lado.
Não pensou duas vezes. Abriu o zíper da calça e despejou todo o conteúdo de sua bexiga sobre o cachorro. O animalzinho recebia o líquido quente em seu rosto, sem se desviar, como quem recebe uma carícia das mais amáveis de seu dono querido.
- É, Chas, só você não me virou as costas. Talvez devesse tê-lo feito.
E foi embora. Não ia mais voltar. Não pelo gesto, mas porque sabia que tudo estava diferente agora. Entre o que fez com o cachorro e o momento atual, em que exterminava outro maço de cigarro, muitas revelações lhe ocorreram. O suor nas costas não o incomodava mais, o tempo esfriava e uma neblina improvável se acercava do Viaduto do Chá. Ele sabia o que teria que fazer agora.
Um mendigo o parou na rua.
- Ô, meu amigo, meu querido, você, um homem tão bonito, tão elegante, não poderia fazer o obséquio de ceder a este pobre cidadão, a gentileza de fornecer um cigarrinho? Tem jeito, amigão?
Meteu a mão no bolso, tirou o cigarro e a caixa de fósforos. O bêbado puxou a fumaça para dentro do pulmão como se sua vida dependesse daquilo.
- Obrigado, Deus lhe pague em dobro.
- Deus não tem nada a ver com isso. Não mais.
- Ah... É, hum... Tá certo então, né? Obrigado, senhor... Qual seria sua graça, excelência?
- Constantine. John Constantine.


Essa é minha maneira simples de fazer minha homenagem a este personagem fascinante que é "Hellblazer", ou John Constantine, como muitos o conhecem. Criado pelo mestre Alan Moore para colocar o Sting (do grupo Police) numa história em quadrinhos, começou como coadjuvante das histórias do Monstro do Pântano e hoje é uma das maiores criações dos quadrinhos ocidentais, e quadrinhos adultos.