domingo, 1 de abril de 2012

"Prosa invertida" ou "Spoiler-conto" (versão 1.5)

Eles se encontraram, se olharam, e seu coração bateu mais rápido. Ou perdeu o fôlego, não sabia muito bem. Ou sabia bem demais até. E poderia jurar que aconteceu o mesmo com ela. A verdade é que tudo seria diferente agora, ou igual ao que deveria sempre ter sido.

Ele a via novamente depois de tanto tempo. Não sabia bem o que pensar, o que sentia, ou talvez soubesse bem demais e não quisesse admitir. Ela o abraçou bem apertado quando o viu, e conversaram muito naquele dia, como velhos amigos que não se vêem há anos (o que não deixava de ser verdade). Nos dias seguintes se veriam ainda mais vezes, e marcariam de sair só os dois, menos de duas semanas depois do seu retorno. Nem tudo tinha ido tão mal assim, afinal.

Voltava chateado. Nada havia dado certo. A empresa naufragou fragorosamente em poucos meses; nao conseguiu um emprego decente que fosse, e teve que abrir mão do seu apartamento; passou a viver de sub-empregos, mal tendo o suficiente para se sustentar. Voltou para casa com a mesma mala, agora surrada, e seu Dom Casmurro na mão (este bem conservado).

Comprou um Dom Casmurro de capa dura, decidido a não emprestar para mais ninguém. Dele, somente dele, assim como a vida nova numa cidade nova. Seu futuro era promissor, ele só tinha que esperá-lo acontecer.

Começaria um projeto totalmente novo em outra cidade, e os amigos lhe organizaram uma festa de despedida. Por incrível que pareça ela veio, mas não ficou muito: um abraço apertado, desejos de sucesso ao pé-do-ouvido; entre os amigos em comum, "nossos amigos", não era onde ela queria estar. Ela passou o resto da noite no seu apartamento? Pensou mais um pouco nele? Meio tarde para se preocupar com isso. A festa foi boa, mas depois de um certo momento ele parou de registrar o que acontecia devido a uma deficiência de origem etílica, e curtiu bastante.

Eles não se falaram muito por um tempo, somente o necessário ditado pelas regras da boa vizinhança. Ele a via de longe sair com outros caras, mas nenhum durava muito. Ele decidiu dar atenção a outras que queriam tanto que ele prestasse atenção nelas, mas nunca tinha tido vontade. Se permitiu.

Brigas bobas, discussões bestas, por que todo relacionamento é assim? Aliás, eles acabam pelos mesmos motivos sempre? Talvez o motivo fosse sempre um só: o que era já não é mais, e é preciso seguir em frente. Ela ficou com seus livros do Machado de Assis, eles estavam todos anotados e ela não quis devolver; não fez muita questão, ele só queria que aquele sofrimento acabasse logo. Não lembrava como ele tinha começado, só queria seu fim. Mas ele sabia que a separação não era o fim, ainda teria que carregar aquilo por muito tempo.

Cada vez mais apaixonado, se é que isso é possível? Não havia motivo para ficarem separados, e isso parecia que não teria fim. Um completava as frases dos outros, e com uma frequência que se poderia dizer alarmante um ligava para o outro no mesmo instante, encontrando a linha ocupada. Só depois da segunda tentativa é que descobriam a coincidência. Os amigos dele e os dela se tornaram deles, e o tempo que parecia não passar enquanto estavam juntos ignorou isso sem cerimônia alguma, e fez o que tinha que fazer: passou.

Tudo era perfeito. As conversas, todos os assuntos, os gostos que combinavam, e o bom humor que fazia os dois rirem por horas e horas enquanto juntos. A companhia era agradável. O sorriso dela era agradável: seus dentes grandes, sua boca carnuda, compunham um conjunto tão bonito de se ver. Seu rosto redondo tinha um quê pueril, e isso o atraía ainda mais: queria tomar conta dela. Aguardava ansiosamente pelo beijo, pela consumação daquele jogo de sedução inicial, aquele reconhecimento que não quer ser, que quer deixar de existir para virar algo completamente distinto. Seria em breve, ele sentia e seu coração pulava em seu peito; depois de tanto tempo reprimindo seus sentimentos com medo de sofrer, ele sabia que sua hora de ser feliz havia chegado.

Começaram a trocar mensagens esporádicas e nasceu uma espécie de admiração: como era bom saber que tinha alguém que prezava tanto a cultura assim. O fascínio era sincero, e a amizade cresceu, mas não foi sozinha: o sentimento começava a mudar, e com isso um frio na barriga, o medo do desconhecido, uma insegurança que, ele esperava, não iria lhe causar uma decepção. Não desta vez.

Tinha acabado de se mudar para o prédio vizinho, e os livros que ela carregava, suas camisetas denunciando suas preferências musicais e cinematográficas os aproximaram para uma conversa despretensiosa. A princípio.

Ele a conheceu, e sabia que sua vida nunca mais seria a mesma.

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